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sexta-feira, 17 de maio de 2024

A Gravidade das Circunstâncias

A minha opinião:

A gravidade das circunstâncias era a expressão que Berta usava para a difícil relação familiar em qualquer situação. As consequências da guerra. E o desfecho que, encerra um ciclo de não escolhas até ao cerne do drama.

A ambiguidade dos nomes que se aplicava aos filhos e aos progenitores, bem como o simbolismo dos números, a presença da religião ou a inveja avassaladora da amiga torna este pequeno livro com uma estrutura narrativa peculiar pouco fluído ou envolvente. Aéreo, diria. Esperava mais e não gostei muito.

Autor: Marianne Fritz
Páginas: 136
Editora: Cavalo de Ferro
ISBN: 9789897877452
Edição: março/2024

Sinopse:
Depois de anos a esforçar-se por se resignar à felicidade da maternidade e da vida doméstica, a tímida e distante Berta Faust, sempre com a cabeça algures a cismar e a duvidar, encontra-se internada na enfermaria número 66. Protegida do mundo exterior e dos outros, sobretudo da sua amiga Wilhelmine e do ex-marido Wilhelm, e da força de gravidade das circunstâncias, «da vida concreta, tal como ela é», Berta terá ainda de cumprir um último sacrifício para encontrar a paz e a absolvição do acto insano e desesperado que marcou o seu exílio definitivo da realidade.

Distinguida, ainda em manuscrito, com o prestigiado Prémio Robert Walser, A Gravidade das Circunstâncias é a fulgurante obra de estreia de Marianne Fritz, autora de culto, que marcou assim de forma indelével a literatura austríaca do século XX.

Um romance inesquecível em que a tragédia se cruza com a sátira, a estranheza com o génio, para contar a história de uma mulher incapaz de lidar com a realidade e os seus horrores, lançando, ao mesmo tempo, uma sombra nos anos do pós-guerra e da Reconstrução da sociedade europeia.

As Minhas Estúpidas Intenções

A minha opinião:

Eu gosto de livros inesperados. E não porque quero ser diferente mas porque busco algo novo que exerça o seu fascínio.

A sinopse deste livro certamente afastou muita gente. A história de um fuínha macho, coxo, numa fábula moderna não é o que mais apetece ler. É simplesmente fa-bu-lo-so. Não é exagero e também não pretendo criar altas expectativas que prejudiquem a leitura, mas como não havia nenhumas, fui bem surpreendida. Um extraordinário primeiro livro de um jovem de vinte e um anos.

Se gosto de histórias curtas também aprecio as que se desenrolam rapidamente e esta é uma párabola com uma personagem corajosa e inteligente, que conhece as suas fragilidades e limitações e contraria o seu destino. Um animal e as suas estúpidas intenções. Um livro sobre a efémera existência.

Autor: Bernardo Zannoni
Páginas: 224
Editora: Dom Quixote
ISBN: 9789722079402
Edição: outubro/2023

Sinopse:
As Minhas Estúpidas Intenções é a história fascinante de Archy, um macho de fuinha nascido na miséria, mutilado ainda jovem por um acidente e vendido como escravo pela mãe a um raposo usurário chamado Solomon, que, considerando-o esperto, resolve ensiná-lo a ler a Bíblia em segredo. Este conhecimento faz de Archy um milagre da zoologia, mas também um ser estranho que acaba por não encaixar em lugar nenhum.

À medida que a vida de Archy é transformada pela descoberta da escrita - e de uma entidade bastante ambígua chamada Deus -, ele começa paradoxalmente a ter saudades da sua velha existência guiada pelo instinto. Mas não pode desaprender o que aprendeu, nem conciliar as suas pulsões mais selvagens com dilemas éticos ou o seu desejo de transcendência com as suas necessidades animais. Escrever sobre a sua vida e passar a outros o conhecimento é a tentativa de Archy de vingar o destino a que a mãe, afinal, o quis condenar.


Vencedor de uma série de prémios no ano da sua publicação, este é um romance de estreia a todos os títulos excecional.

Um Crime da Solidão

 

A minha opinião:

Não é novidade que intercalo leituras. Não resisto a espreitar o que me desperta curiosidade e amiúde e sem perder o interesse no que estou a ler avanço com outro livro, preferencialmente preferencialmetne pequenos livros.

Este é um tema que me inquieta. E que procuro saber mais, talvez por ser de difícil compreensão para quem não chegou a um ponto de o ponderar como uma saída ou alternativa. Andrew Solomon é conhecido por o abordar com base nas suas vivências com sensibilidade e clareza. E este é um livro que comecei sem sonseguir parar de o ler. Não é um livro amargo mas lúcido e esclarecedor.

Autor: Andrew Solomon
Páginas: 160
Editora: Quetzal Editores
ISBN: 9789897226984
Edição: novembro/2020

Sinopse:
Andrew Solomon, conhecido dos leitores portugueses através dos livros O Demónio da Depressão e Longe da Árvore, reúne neste volume uma série de textos sobre o suicídio, analisado sempre a partir de uma história pessoal ou de um caso concreto: quer do círculo mais íntimo do autor, como, por exemplo, o inesperado suicídio do exuberante amigo Terry, ou o suicídio assistido da mãe; quer de figuras públicas, como os de Anthony Bourdain ou Robin Williams, ou até os de celebridades literárias, como David Foster Wallace ou Sylvia Plath.

Um Crime da Solidão reflete sobre o suicídio, as suas causas e circunstâncias (solidão, depressão), o efeito de imitação, os aspetos facilitadores (como o fácil acesso a armas) e a incompreensível incidência em pessoas aparentemente realizadas e bem-sucedidas. São nove magníficos textos, na prosa sempre inteligente e cativante de Andrew Solomon.

quinta-feira, 16 de maio de 2024

Marzahn, Mon Amour

 

A minha opinião:

Não será um livro para toda a gente mas eu adorei estes curtos capítulos sobre personagens de Marzahn que visitam a pedicure. Uma manta de retalhos muito singela do quotidiano com personagens banais mas profundamente humanas em que, sem juízos de valor esta pedicure é uma constante solitária e compassiva. Um olhar diferente do que vemos, muitas vezes sem reflectir sobre o papel que estas personagens têm nas nossas vidas e é um mimo por isso. Algumas destas personagens com as suas pecularidades e manias são parecidas a outras que conhecemos e isso torna esta estória muito realista e próxima.

Uma pequena comunidade que viveu uma parte da sua longa vida na RDA e se adaptou. Os cuidados que não se podem dispensar, até as profissionais do salão, numa escrita eficiente. Os pés são valorizados. A natureza humana também. 

Afinal, não demorei a ler. Prazerosa leitura que se faz breve.

Autor: Katja Oskamp
Páginas: 128
Editora: Relógio D'Água
ISBN: 9789897834226
Edição: fevereiro/2023

Sinopse:
Uma mulher que se aproxima dos anos invisíveis da meia-idade abandona a carreira de escritora para se tornar pedicura em Marzahn, em tempos a maior área residencial pré-fabricada da Alemanha Oriental, nos arredores de Berlim. A partir daí observa atentamente os clientes e colegas, mergulhando nas suas histórias pessoais.

Cada uma das histórias se destaca como uma vinheta, contada com humor e emoção, e juntas formam um retrato matizado de uma comunidade.

Caruncho

A minha opinião: 

UAU! 
Mal comecei mas é de tremer. Não as louva-a-deus mas o muito que se revela. Promete. Uma novela de emoções fortes e com laivos de terror soberbamente bem escrita é o que promete mal folheamos este livro. Não é a capa que assusta mas a violência infringida em tempo de miséria e fome. Uma casa que se fecha num viciado desígnio geracional. E o caruncho que as duas mulheres, avó e neta, vozes desta história têm em si quando vingam. Dor e ódio. 

O caruncho é a podridão em todos os antros. O que corrompe, corrói, destroi. 

Autor: Layla Martínez
Páginas: 128
Editora: Antígona
ISBN: 9789726084556
Edição: março/2024

Sinopse:
Caruncho (2021) narra o regresso de uma neta, acusada de um crime, à casa rural da família e mergulha o leitor no coração de uma Espanha vazia, marcada por resquícios do franquismo, uma terra tão agreste e estéril como o destino a que condena as mulheres que nela vivem.

Contada a duas vozes, pela jovem e pela avó, esta história de rancor e vingança é indissociável da memória do lar assombrado, de espectros que clamam justiça, entre quatro paredes sobre as quais pesam traumas herdados e décadas de violência e opressão.

Um aclamado romance de estreia, com ecos de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e de alguns contos de Silvina Ocampo, em que se entrelaçam terror, injustiça social e uma pesada herança familiar que, como o caruncho, corrói as protagonistas.

A Livraria Perdida

 

A minha opinião: 

A intercalar leituras mais pesadas e em viagem li um livro que, a expectativa era que não fosse parvo (já não tenho pachorra).

Uma carta antiga, que menciona um livro de que ninguém ouviu falar, escondido numa livraria que não existe. E para contar esta história recua a 1921 alternadamente e sempre em torno de livros e os seus autores, nomeadamente Emily Bronte. O que me encanta. Uma história com um toque de realismo mágico. "O mais fascinante nos livros, nos escritores, nas histórias - nunca sabíamos onde nos levariam."

Os livros são portais para outras experiências, outras vidas. Neste livro, a vida de Opaline e de Martha. Ambas em fuga. Ambas procuravam ser livres e não presas a um casamento. Ou no hospício.

Um livro conforto. Terno. Duas histórias de amor e uma ode aos livros que mudam vidas.

Autor: Evie Woods
Páginas: 368
Editora: Singular
ISBN: 978-989-789-036-9
Edição: janeiro/2024

Sinopse:
Numa rua tranquila de Dublin, uma livraria perdida está à espera de ser encontrada.

Opaline, Martha e Henry parecem não ter nada em comum além de terem sido, durante demasiado tempo, personagens secundárias nas suas próprias vidas. Opaline tem de fugir de Londres para não ser obrigada a casar-se, Martha parece inevitavelmente presa numa relação tóxica, e Henry está noivo de uma mulher que não ama.

É em Ha’penny Lane, uma pacata rua de Dublin, que os caminhos destas personagens se cruzam. Era ali que devia estar a livraria fundada por Opaline, onde Henry entrou uma noite, pouco depois de chegar à Irlanda… mas não só não está, como também não há registos capazes de provar que alguma vez tenha existido.

Seguindo o pouco que sabem sobre a incrível vida desta misteriosa mulher, Henry e Martha tudo farão para encontrar a livraria perdida e descobrir os seus segredos. Por entre os ramos de uma árvore que teima em crescer numa cave da capital irlandesa, páginas que sussurram, mistérios literários desvendados e livros que aparecem em prateleiras sem que alguém os tenha posto lá, as histórias destas três personagens que o destino põe à prova serão reveladas, mostrando que até a vida mais banal pode tornar-se tão fascinante como as que se encontram nas páginas dos melhores livros.

Deus na escuridão

A minha opinião: 

Ora bem... Não sei se iria ler este livro se não fosse muito bem recomendado por quem me conhece como leitora. Gosto de ouvir Valter Hugo Mãe que me faz sorrir com o seu humor inteligente mas os seus romances nem sempre me agarram e desde o Desumanização fiquei sem animo para o ler. Deus na Escuridão fizemos as pazes.

Prosa poética para descrever a democrática miséria na ilha da Madeira e a devoção para a suportar como sentido extremo da vida. Uma criança de dez anos é o narrador inicial. Felicissimo é a alcunha do dedicado irmão de Poucochinho, assim também chamado por ausencia de sexo que, viviam na casa mais subida e mais pobre da ilha nos anos oitenta. Uma história tão corrida que se lê como se fosse cantada, tal o ritmo marcado, que descreve a vida das gentes com bondade e inocência. O amor filial e o amor fraterno.

"Eu acho que Deus guarda para as mulheres um pedaço muito maior de ternura."

Deus na escuridão é o capítulo 10 do início da segunda parte e nenhuma mãe fica indiferente ao comparar o imenso amor por um filho a Deus.

"Deus é exatamente como as mães. Liberta seus filhos e haverá de buscá-los eternamente."

Lindo, terno, maravilhoso. Um narrador e protagonista único, Amei.

Autor: valter hugo mãe
Páginas: 288
Editora: Porto Editora
ISBN: 978-972-0-03099-3
Edição: janeiro/2024

Sinopse:
«Deus é exactamente como as mães. Liberta Seus filhos e haverá de buscá-los eternamente. Passará todo o tempo de coração pequeno à espera, espiando todos os sinais que Lhe anunciem a presença, o regresso dos filhos.»
Este livro explora a ideia de que amar é sempre um sentimento que se exerce na escuridão. Uma aposta sem garantia que se pode tornar absoluta. A dúvida está em saber se os irmãos podem amar como as mães que, por sua vez, amam como Deus.
Passada na ilha da Madeira, esta é a história de dois irmãos e da necessidade de cuidar de alguém. Delicado e profundo, Deus Na Escuridão é um manifesto de lealdade e resiliência.

terça-feira, 30 de abril de 2024

As Três Mortes de Lucas Andrade

 

A minha opinião: 

Este livro ficou a marinar algum tempo. Apenas porque não chegou o momento certo e outros se impuseram. Não é um pequeno livro e a escrita fluída, honesta e limpa, bem como a história realista e tocante (sem nada de lamechas) teria que ser retomada. 

"A miséria sem filtros soa a fábula negra aos ouvidos de quem nunca teve fome, frio e febre."

"O êxodo do interior como fuga à tensão e crítica de quem na pobreza tinha o arrojo de sonhar ser diferente como a mãe de João Miguel. Ela não lê mas sabe que o filho tem que ler. Enquanto ela renasce nas perfiferias de Lisboa, o filho mortifica naquele mundo hostil. O desafogo dos pais que os fazia alegres.

"Quem diz que o dinheiro não traz felicidade nunca foi miserável."

Um livro que prende com muitas das memórias coletivas ou individuais que temos. Crua análise sócio-económica num primeiro romance bem conseguido. Violência, desamparo, adaptação e suicídio.

Alerta: Apesar da linguagem precisa e talvez por isso não é fácil ler este livro porque traz alguma desumanidade que custa ler. Peca por excesso. E sem dúvida, que o retrato de época e de um certo estrato social não é apenas ficcional. Brutal!

"A mulher pobre era vista como um objeto, uma escrava sexual às ordens dos senhores, uma barriga de aluguer às ordens das senhoras."

 Autor: Henrique Raposo
Páginas: 640
Editora: Alfaguara Portugal
ISBN: 9789897229442
Edição: outubro/2023

Sinopse:
Visto de um lugar onde pode estar Deus, este romance é a saga de um suicida. Sabemos, desde o início, que ele vai matar-se - é a autópsia de um suicídio. Os leitores dividir-se-ão no julgamento moral deste anti-herói. Uns considerá-lo-ão um vilão, outros um herói. Para terminar, talvez uma minoria mantenha a esperança de que ele permanece vivo e que voltará numa outra encarnação.

Por outro lado, trata-se da saga de um jovem pobre que vive em conflito com os códigos masculinos da pobreza, da rua, da fábrica. Visto através das personagens que rodeiam o anti-herói, sobretudo mulheres, o livro de Henrique Raposo é um retrato novo e revolucionário da pobreza, fixando-se na nossa segunda metade do século XX, retratando as migrações do campo para a cidade, os choques entre a cidade e a periferia - e o nascimento dos subúrbios dos anos 60 e 70.

Para isso, convoca o elemento invisível na ficção portuguesa de agora: a pobreza, o choque entre classes e, sobretudo, os conflitos dentro de cada classe - sempre refletindo sobre a violência e o mal e colocando uma pergunta recorrente: como se mantém a decência no meio do caos, da pobreza e do mal?

Notas sobre uma Execução

A minha opinião: 

As expectativas podem prejudicar a experiência de leitura. Acho que todos sabemos isso mas é inevitável porque somos nós que as criamos quando escolhemos um livro ou quando nos falam desse livro. E mesmo sem spoilers é um ponto de partida que pode determinar o quão gostamos do que lemos. Vou tentar não prejudicar ninguém porque as minhas expectativas fizeram com que andasse renitente a ler. Receava o que menos gosto de ler: terror. Não tenho atração por histórias de serial killers.

Notas sobre uma execução é como o título indica sobre um homem condenado à morte. Ansel. Narrador e protagonista. Um homem que fascina as mulheres porque as compreende e sabe lidar com elas, enquanto estas são as grandes personagens que, ganham dimensão ao relatar excertos da vida deste homem e principalmente ao se revelarem numa história engenhosa e bem contada. Viciante.

Autor: Danya Kukafka
Páginas: 312
Editora: Editorial Presença
ISBN: 9789722373272
Edição: março/2024

Sinopse:
Premiado e considerado o melhor livro do ano, na sua categoria, pelo New York Times, um falso thriller que parte da morte anunciada de um homem para se tornar uma grande história sobre mulheres e o que as liga.

Faltam doze horas para Ansel Packer ser executado. Se tem plena consciência do que fez, enquanto espera a morte - o mesmo destino que deu a várias mulheres, anos antes -, o que Ansel mais quer é ser entendido. Mas bastarão as suas palavras para realmente o compreendermos?

A voz do assassino em série é, então, entrecortada pelo caleidoscópio de três mulheres - a mãe, a cunhada e a detetive que o prendeu -, e escutamos a história da vida de Ansel. Lavender, a mãe, tinha dezassete anos e foi levada ao desespero; Hazel, gémea da mulher do condenado, assistiu ao desenrolar daquela relação tóxica, que devorou toda a família; e Saffy, a detetive temerária que o encurralou, não consegue dar verdadeiro sentido à sua vida.

À medida que o fim se aproxima, aquelas três mulheres refletem sobre as escolhas que culminaram em tragédia, hábil, subtil e verdadeiramente explorando as feridas abertas nas vidas de todos os participantes da história.

Retrato do que é - ou pode ser - uma mulher, do que, afinal, nos liga a todas, Notas sobre uma Execução é um tecido criado lentamente, fio a fio, sobre uma tela de suspense e empatia, que põe em perspetiva o sistema de justiça, as ideias feitas sobre os assassinos de mulheres e o simplismo com que, amiúde, olhamos para os que chamamos culpados.

Natureza Urbana

A minha opinião: 

Não resisto a um bom conto ou novela. Pequenos e tão ricos que me encantam. Uma pequena história ou episódio que leio em qualquer momento e em qualquer sítio. Personagens diferentes mas extraordinárias. E que persistem na memória e nos acompanham no quotidiano sem ser preciso falar alto mas em diálogo na nossa cabeça. Alguém que mais ninguém vê mas que não nos deixa sós. Um outro olhar porque se procura ver a natureza urbana quando se anda devagar. E repensar como nos alimentamos. Simples assim.

Autor: Joana Bértholo
Páginas: 64
Editora: Relógio D'Água
ISBN: 9789897833403
Edição: abril/2023

Sinopse:
«Eu era uma pessoa simples urbana, uma planta que insistiu em crescer entre os paralelepípedos do passeio, na rua mais concorrida da metrópole, cujo destino é conhecer a sola dos sapatos de milhares de turistas e transeuntes e respirar violentas concentrações de dióxido de carbono. Eu sabia chamar um táxi, mas não o rebanho; sabia levar uma muda de roupa à lavandaria self-service e trazê-la limpa, mas não sabia levar um cântaro à teta da vaca e trazê-lo cheio. Não sabia atear fogo, construir um abrigo, nem situar-me olhando as estrelas. Não conhecia o significado dos ventos nem descodificava as nuvens, quando antecipam temporal. Os elementos do mundo em meu redor que eu considerava naturais eram indecifráveis.»

Fahrenheit 451

A minha opinião: 

A temperatura a que um livro se inflama e consome.

Nesta frase está contido tudo o que eu sabia sobre este livro. Um livro sobre a destruição de livros. E apesar de ser um clássico, muitas vezes recomendado, não me tentava. Os clubes de leitura têm essa incrivel vantagem, como já tenho referido. Direcionam. Vamos renitentes abrir um livro pousado à espera do momento certo e não raras vezes ficamos maravilhados.

Guy Montag é o protagonista. Um bombeiro, como o pai e o avô foram mas não apagava mas ateava fogos. Uma jovem vizinha questiona se é feliz e ...

A destruição dos livros como forma de impedir de se sentir emoções ou sentimentos. De se pensar. Os livros são coisas. Era a mensagem.
"Assim, quando eram só coisas, nada restava mais tarde para incomodar a consciência. Tratava-se simplesmente de uma limpeza, de um trabalho de desinfeção."

"Abatamos o espírito humano."

A formatação desde o berço. Alegres foliões e estúpidos. Todos iguais. Um romance distópico de ficção cientifica de 1953, que continua pertinente como um alerta para a censura institucional ou a restrição de liberdades e direitos, com o apoio dos meios de comunicação (e atualmente das redes sociais).
Dividido em três partes é um livro que procura agitar consciências a não ceder ao alheamento em que se acomodam sem procurar uma posição esclarecida e sem espaço para a imaginação e a criatividade que abrem novos mundos.
Não sendo o meu gênero de leitura favorito gostei.

Autor: Ray Bradbury
Páginas: 240
Editora: C11 X 17
ISBN: 9789897733048
Edição: julho/2020

Sinopse:
Guy Montag é um bombeiro. O seu emprego consiste em destruir livros proibidos e as casas onde esses livros estão escondidos. Ele nunca questiona a destruição causada, e no final do dia regressa para a sua vida apática com a esposa, Mildred, que passa o dia imersa na televisão.

Um dia, Montag conhece a sua excêntrica vizinha Clarisse e é como se um sopro de vida o despertasse para o mundo. Ela apresenta-o a um passado onde as pessoas viviam sem medo e dá-lhe a conhecer ideias expressas em livros. Quando conhece um professor que lhe fala de um futuro em que as pessoas podem pensar, Montag apercebe-se subitamente do caminho de dissensão que tem de seguir.

Mais de sessenta anos após a sua publicação, o clássico de Ray Bradbury permanece como uma das contribuições mais brilhantes para a literatura distópica e ainda surpreende pela sua audácia e visão profética.

quinta-feira, 28 de março de 2024

Os Dias de Saturno

 

A minha opinião: 

Paulo Moreiras não desilude. 

Uma daqueles gostos adquiridos que deleita e sacia. 
Se de início a escrita surpreende e até atrapalha porque parece adequada mas datada e pode surgir a tentação de largar, tal seria um erro crasso. Num instante ficamos a par e naturalmente aderimos a estes vocábulos que se convertem em sinónimos bem conhecidos e não perdemos histórias que muito nos dizem e divertem. 

Arte na cozinha e arte alquímica ao serviço da Coroa Portuguesa no sec. XVIII por quimeras de ouro e vida eterna. O negro assinala o princípio da Obra. É o eclipse que tanto temor trazia. Uma viagem no tempo com humor e maravilhosas personagens e muitas peripécias e reviravoltas. O povo português sempre foi muito engenhoso.

Não desprezamos o gosto pela comida, que nesta história tem de sobra, em que mistura personagens reais e ficticias. Um livro maravilhoso que foi revisto e que merece tanto ser lido.

Autor: Paulo Moreiras
Páginas: 232
EditoraCasa das Letras
ISBN: 9789896618940
Edição: fevereiro/2024

Sinopse:
Amor e comida são os ingredientes principais deste romance, em que o cómico e o trágico seguem lado a lado, por entre segredos, acasos e embustes, sempre na busca de quem somos. É na Lisboa do século XVIII, desmedida e faustosa, a fervilhar de vida e infestada de ratoneiros, tabernas, comédias e casas de pasto, que perambulam as personagens deste romance cheio de reviravoltas: entre elas, o poeta satírico Tomás Pinto Brandão, alfaiate dos costumes, ou o padre Rafael Bluteau, autor do Vocabulário Português e Latino; destacam-se, no entanto, o médico da corte João Curvo Semedo e o mestre cozinheiro Domingos Rodrigues, ambos secretos alquimistas e bons garfos. É certo que as suas experiências arriscadas nem sempre resultam como esperado; e agora, que o cozinheiro agoniza no leito, o seu filho adoptivo, portador de uma estranha marca de nascença, sai à procura de um velho médico e, de caminho, tropeça na rapariga dos seus sonhos... e em sarilhos.

Reflexão sobre o que a vida nos reserva de inescapável, o romance Os Dias de Saturno trata a alquimia das emoções sem nunca esquecer os prazeres da mesa. Galardoado com o Prémio Gourmand na categoria Melhor Livro de História Culinária no ano da sua publicação original, oferece-nos uma leitura realmente deliciosa e intemporal, ao estilo cuidado e imaginativo a que Paulo Moreiras já nos habituou.

Maus Hábitos

 

A minha opinião: 

Gosto mesmo muito quando um livro me surpreende.

A linguagem direta, específica, com metáforas incisivas é uma das características que define esta familia, este bairro e esta história. E esta é a história de uma pequena travesti incógnita num bairro operário. O crescimento num ambiente hostil em que procura formar a sua personalidade e identidade é assustadoramente real. ~

Um livro que vale a pena pela tremenda crítica social e pela mestria da estreante Alana S. Portero ao comer tanto e bem em tão pouco texto. Adoro ler um livro assim, que inquieta e transforma. Um livro em que que se sente a dor e onde também há lugar para a ternura, resiliência e superação. Um livro que nos afunda mas também nos ergue.

"Morre-se madrilena tal como se morre trans. Por mais que nos empenhemos em negá-lo."

"Antes de conseguirmos definir-nos, os outros desenham os nossos contornos com os seus preconceitos e as suas violências."

Autor: Alana S. Portero
Páginas: 248
Editora: Alfaguara Portugal
ISBN: 9789897872365
Edição: fevereiro/2024

Sinopse:
Um desafio a corações empedernidos: assim é Maus Hábitos, a história lírica e feroz de uma menina presa num corpo de rapaz, desbravando o caminho rumo à sua identidade, à revelia de tudo e de si mesma.

«Eu, menina esperta, maricas encoberta, gaga, gorducha, com uma pala a cobrir-me o olho esquerdo e uns óculos maiores do que o desejável, era o oposto da imagem de uma pequena endiabrada […]. Quando os adultos olhavam para mim, achavam-me engraçada ou sentiam um pouco de pena, nada grave […]. Dava-me conta disso e aprendi a usá-lo a meu favor. Conseguia pensar em termos cruéis. A consciência de que necessitamos de um armário para nos escondermos torna-nos espertíssimos.»

Este romance leva-nos numa travessia pelo território mais íntimo da natureza humana — uma travessia da qual não saímos incólumes. Maus Hábitos é a história do encontro de uma pessoa consigo mesma, alguém que nasce no corpo errado, no lugar mais triste e sem futuro, num tempo desolado. Pela mão da protagonista, vamos até à sua infância em San Blas — um bairro operário suburbano e dizimado pela heroína nos anos oitenta —, passamos pela adolescência selvagem nas noites clandestinas de Madrid e chegamos ao raiar do milénio, quando a promessa de liberdade é soterrada por um episódio de insuportável violência. Contudo, das cicatrizes mais fundas há de emergir não a redenção, mas a esperança.

A Cicatriz

A minha opinião: 

"A beleza é subjectiva, característica que partilha com a dor."

Um casal jovem com uma excelente relação viaja para umas ansiadas férias no Rio de Janeiro. Assim começa esta narrativa em que à chegada apreciam a paisagem e em que ela descreve as circunstâncias e o relacionamento que tinham. O quão eram felizes. E é difícil não admirar a escrita de Maria Francisca Gama. E não sentir o drama que se avizinha em antecipação.

A fluidez desta narrativa muito realista e limitada ao que é relevante conquista de imediato com uma narradora que convence com um terrível testemunho anónimo.

Um romance que de tão bem contado faz eco no leitor. A consciência de um pequeno deslize e tudo muda.

Autor: Maria Francisca Gama
Páginas: 168
Editora: Suma de Letras
ISBN: 9789897875755
Edição: fevereiro/2024

Sinopse:
«Éramos felizes, verdadeiros camaradas e a âncora um do outro. Um dia o nosso barco afundou-se e nenhum dos objetos que éramos nos salvou.»

Um casal foi de férias para o Rio de Janeiro, numa viagem que prometia ser inesquecível. Depois de dias encantadores, banhados pelo sol e pelo espírito leve e sempre em festa carioca, aproveitam uma das últimas noites para irem jantar fora. Quando terminam a refeição, satisfeitos e apaixonados, decidem ir a pé para o hotel, mas não se recordam se o caminho mais perto é pela esquerda ou pela direita. Como é que a vida pode mudar tanto, apenas assim, por uma escolha irrisória?

Um relato profundo e duro, escrito na primeira pessoa, que se debruça sobre a finitude da vida, as decisões irrefletidas que a moldam e o conceito de amor eterno, com a cidade maravilhosa como pano de fundo.

A uma Hora Tão Tardia

A minha opinião: 

Gostei tanto do que li de Claire Keegan que nem hesitei quando vi este último livro e sequer li a sinopse. E mais uma vez "A uma hora tão tardia" foi um conto sucinto, preciso e avassalador. Uma preciosidade.

Eu sou o mais sintética possível no que opino porque não leio muito do que muito escrevem sobre qualquer livro. Como tal, os contos de Claire são perfeitos para mim porque se cingem ao essencial. Não há necessidade de acrescentar mais nada para todo o sentido da história nos ser perceptível e rápidamente sentido. 

Mas há mais neste pequeno livro. Mais dois contos. "A morte lenta e dolorosa" e "Antártica". Dois outros contos sobre a solidão e a decepção. Dificeis de esquecer.

Autor: Claire Keegan
Páginas: 88
Editora: Relógio D'Água
ISBN: 9789897834127
Edição: março/2024

Sinopse:
Um tríptico de histórias sobre amor, desejo, traição, misoginia e as sempre intrigantes interações entre mulheres e homens. Celebrada pelos seus contos, Claire Keegan oferece-nos três histórias que constituem uma exploração da dinâmica de género, numa trajetória entre os seus primeiros e últimos trabalhos.

Em A uma Hora Tão Tardia, Cathal enfrenta um longo fim de semana, recordando a mulher com quem poderia ter passado a vida, se tivesse agido de forma diferente. Em A Morte Lenta e Dolorosa, a chegada de uma escritora à casa à beira-mar de Heinrich Böll é perturbada por um académico que impõe a sua presença e as suas opiniões. E, em Antártida, uma mulher casada viaja para fora da cidade para descobrir como é dormir com outro homem e acaba nas mãos de um estranho possessivo.

Cada história investiga as dinâmicas que corrompem o que poderia existir entre seres humanos: a falta de generosidade, o peso das expectativas e a iminente ameaça de violência; e todas prometem permanecer na memória do leitor muito depois de fechar o livro.

A Família Caserta

 

A minha opinião:

Aurora Venturini já é imperdível com mais este romance que leio. Não será certamente do agrado de todos mas eu adoro a narrativa despudorada e mordaz em que não há lugar para coitadinhos. Tudo muito nu e cru. Sem paliativos.

Maria Micaela é a primogénita feia e sobredotada não amada pela familia e a narradora desta história. A intelectual que aprendeu o desdém. 
"A Chela, natural e primitiva na forma, profundamente culta no conteúdo, era algo impossível de suportar."

Fácil perceber que as vivências e a ficção se confundem e se dúvidas houvesse a nota preliminar esclarecia que Aurora não teve filhos devido ao medo de gerar seres monstruosos.

Vertiginoso romance que tem um efeito hipnótico. O leitor é arrastado num turbilhão com ambíguos sentimentos. Incrivel. E tão bom.

Autor: Aurora Venturini
Páginas: 248
Editora: Alfaguara Portugal
ISBN: 9789897872358
Edição: março/2024

Sinopse:
A história de uma família mergulhada na infâmia, narrada por uma rapariga sobredotada, com problemas emocionais: ingredientes para um romance de alta voltagem.

«De um só golpe, destruí a segunda juventude da minha mãe, talvez a única.» Assim conhecemos María Micaela Stradolini, ou Chela, protagonista inolvidável deste romance, ambientado na alta burguesia argentina dos anos 1920. A irrequieta e antissocial Chela mergulha num baú de papéis e fotografias, tesouros perdidos da sua biografia e da sua família. Ela, que nunca foi nada para ninguém e que é incapaz de se comover, até com a morte do que foi o seu grande amor, vai usar estes objetos para regressar a uma infância de menina rica e talentosa, magra demais e morena demais para o gosto da época. o retrato do que a rodeia é sombrio: a mãe, uma pianista fracassada, adora apenas Lula, a filha do meio; o pai é frio e psicologicamente violento; Lula insulta constantemente a irmã; Juan Sebastián nasce com uma deficiência profunda.

A ânsia maior de Chela é por libertação e liberdade — encontrará ambas nas viagens que faz como adulta, em busca do seu passado e do seu futuro, incluindo uma viagem à Sicília, onde encontrará, por fim, as raízes da sua singularidade.

Aurora Venturini, celebrizada pelo romance As primas, volta a mostrar-se, com um exímio equilíbrio entre sombra e luz, ironia e profundidade, como uma cronista mordaz da natureza humana. a família Caserta é mais uma brilhante exibição da verve narrativa de uma escritora que se adiantou ao seu próprio tempo.