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sexta-feira, 31 de março de 2017

O Czar do Amor e do Tecno

Autor: Anthony Marra
Edição: 2016/ agosto
Páginas: 384
ISBN: 9789724750965
Editora: Editorial Teorema

Sinopse:
Em 1937, um promissor pintor de Leninegrado vê-se reduzido à tarefa ingrata de "apagar", de pinturas e fotografias, os dissidentes do regime soviético. Entre os inúmeros rostos que faz desaparecer, está o do seu próprio irmão, condenado à morte.

Na atualidade, uma historiadora de arte dedica-se a estudar o mistério que se esconde na obra desse censor. Nas centenas de imagens que alterou, ele introduziu obsessivamente um rosto. Quem foi essa figura anónima, a um tempo dissimulada e omnipresente na História da Rússia?

O segredo do criador de rostos atravessa décadas e fronteiras e confunde-se com a memória do país. Cruza as trajectórias de uma bailarina caída em desgraça, espiões polacos, mercenários, um aprendiz de mendigo, uma beldade siberiana, e até um lobo. E como pano de fundo, uma cidade com um lago de mercúrio, um céu sem estrelas e uma floresta de plástico.

Um livro profundamente original, que nos leva de S. Petersburgo aos confins da Sibéria e à Chechénia, e consolida Anthony Marra como um dos jovens escritores americanos mais aclamados da atualidade.


A minha opinião:
Este ano tem sido fértil em boas leituras, e isso é tão gratificante, principalmente, quando não é previsível e como tal não nos lançamos na leitura com elevadas expectativas.  Francamente, não percebo, como livros menores são amplamente divulgados, enquanto um livro excelente não há um maior cuidado com a imagem e é quase inexistente. Não gosto da capa. Mas reconheço que gosto cada vez mais de ler contos, e este, é talvez, o melhor livro que já li do género.

O livro tem um lado A, com quatro contos, e um lado B com mais quatro, e no meio um intervalo preenchido pelo conto que dá nome ao livro. Várias personagens são comuns e as tramas cruzam-se e completam a panorâmica que vai desde a Rússia Estalinista até aos nossos dias, com foco na  Chechénia.  Não são contos bonitos. As vidas que retratam são de uma sensibilidade e beleza diferente que nos marca. Que incomodam mas convencem. Não estão muito longe do que sabemos mas não queremos ler, ou pensar sequer.

Começa com o artista corretor, um oficial da propaganda, um cidadão soviético que introduz o rosto do traidor Vaska, seu irmão, em segundo plano porque "o mal nunca será remediado e os Vaskas acrescentados à arte nunca compensarão o Vaska subtraído à vida". (pag.43) Ficou conhecida como a assinatura do censor anónimo que mais tarde Nadya perseguia em um outro conto. Uma bailarina espantosa com quem foi acusado de conspirar foi a queda deste artista e das vidas que lhes sucederam numa paisagem pós-apocalíptica e tóxica porque lhes foi ensinado que "Estaline foi um gestor eficaz que agiu de maneira completamente racional" e que os campos de trabalhos forçados no Ártico constituiram "uma parte crucial do projeto de Estaline para fazer do país uma grande nação". (pag.96).

Tanto para descobrir nestes contos, como o que se passa no metro, ou melhor, no Palácio do Povo, como lhe chamavam, porque se destinava não a czares ou príncipes mas a pessoas comuns. Mas o melhor é ler, sem nada perder. Recomendadissimo. Gostei muito.

domingo, 19 de março de 2017

Nem Tudo Será Esquecido

Autor: Wendy Walker
Edição: 2017/ janeiro
Páginas: 280
ISBN: 978-972-23-5933-7
Editora: Editoral Presença

Sinopse:
Na pacata cidade de Fairview, no Conneticut, a vida parecia perfeita até à noite em que um acontecimento trágico chocou a comunidade. Jenny Kramer, uma adolescente com quinze anos, é brutalmente violada depois de sair de uma festa. Os médicos decidem administrar-lhe um fármaco usado nos casos de patologias de stresse pós-traumático, eliminando as memórias do incidente. Contudo, nos meses seguintes, Jenny é surpreendida com sensações que a fragilizam psicologicamente, levando-a a tentar o suicídio. O pai, Tom, está determinado a descobrir o culpado e fazer justiça. A mãe, Charlotte, age como se nada tivesse acontecido.

Os pais de Jenny procuram a ajuda do psiquiatra, Alan Forrester. Nisto, o seu casamento é posto à prova, revelando segredos e fragilidades, bem como a teia que une toda a comunidade. Afinal, todos têm algo que não desejam revelar e a busca pelo violador conduz a um thriller psicológico com um desfecho inesperado e perturbante.

A minha opinião:
Gosto quando um livro que eu não antecipei, me agarra e me prende á leitura como este. Um livro que eu afirmara não pretender ler. Apenas pela temática. Uma violação brutal de uma adolescente. Um crime numa pequena comunidade sem testemunhas. E sem provas. Um crime que acharam que poderiam apagar da vitima, esquecendo as emoções que ficam registadas, apesar da memória ter desaparecido. Mas... um trauma não pode ser curado com comprimidos. Implica tempo e esforço. A arte do terapeuta é fazer com que a vitima reviva os acontecimentos num ambiente emocional tranquilo para as acomodar com emoções mais benignas, o que lhe dá imenso poder. A mente que controla o corpo. 

Uma boa amiga e uma grande leitora entregou-me este livro convencida de que eu ia gostar de o ler e mais uma vez não errou. Gosto de thrillers psicológicos, mesmo que me façam tremer e parar por momentos de o ler. Não foi o caso. O narrador, absolutamente brilhante, não nos deixa interromper a leitura com a promessa de ir desvendando sem hesitação e controlada emoção, inclusive porque começou a tomar alguma medicação, tudo o que se passou com qualquer uma das personagens, destacando-se Jenny, Sean, Charlotte, Tom e Bob. E não falha. Todos se revelam, quase todos de viva voz, com as suas confissões. 

Escrita assertiva e clara, sem perder de vista os principais aspectos da investigação, ou os contornos dos envolvidos naquele drama. A psicologia do crime. Os segredos do passado que não se superam. Muito bom. Sequer consegui descobrir o violador, o que foi uma surpresa. 

sábado, 11 de março de 2017

O Leitor do Comboio

Autor: Jean-Paul Didierlaurent
Edição: 2017/ março
Páginas: 196
ISBN: 9789897243462
Editora: Clube do Autor

Sinopse:
O poder dos livros através da vida das pessoas que eles salvam. Uma obra que é um hino à literatura, às pessoas comuns e à magia do quotidiano.
Jean-Paul Didier Laurent é um contador de histórias nato. Neste romance, conhecemos Guylain Vignolles, um jovem solteiro, que leva uma existência monótona e solitária, contrariada apenas pelas leituras que faz em voz alta, todos os dias, no comboio das 6h27 para Paris.
A rotina sensaborona do protagonista desta história muda radicalmente no dia em que, por mero acaso, do banquinho rebatível da carruagem salta uma pen drive que contém o diário de Julie, empregada de limpeza das casas de banho num centro comercial e uma solitária como ele… Esses textos vão fazê-lo pintar o seu mundo de outras cores e escrever uma nova história para a sua vida.
O Leitor do Comboio revela um universo singular, pleno de amor e poesia, em que as personagens mais banais são seres extraordinários e a literatura remedia a monotonia quotidiana. Herdeiro da escrita do japonês Haruki Murakami, dotado de uma fina ironia que faz lembrar Boris Vian, Jean-Paul Didierlaurent demonstra ser um contador de histórias nato.


A minha opinião:
Dificilmente quem gosta de ler fica indiferente a este livro. Este é um desabafo impulsivo e sentido. As criticas de imprensa que aparecem na contracapa, ao contrário do que acontece com muitos outros livros, correspondem à minha verdade. Um demasiado pequeno romance que me arrebatou e enterneceu desde o início. Primeiro Guylain e depois Julie. Que personagens excepcionais! Realmente, as pessoas comuns escondem um mundo extraordinário.

Gosto de recorrer a excertos do autor. Neste caso, para apresentar a personagem Guylain, um homem simples e solitário que salva diáriamente umas quantas páginas soltas da Coisa e partilha o seu conteúdo com os passageiros do comboio. E com os leitores. 

"Gosto de livros apesar de passar a maior parte do meu tempo a destruir grande parte deles. O meu único bem é um peixinho vermelho que se chama Rouget de Lisle, e conto por únicos amigos um amputado que passa o tempo á procura das suas pernas e um versejador que só sabe falar em versos alexandrinos." (pag.189)

Duas idosas solicitam a sua comparência na sua residência uma hora por semana para lhes ler como fazia no comboio e a surpresa não termina por aí. Um dia, através dos docs da pen drive que achou, descobriu o diário de Julie e ficou interessado em a conhecer.
A vida de Julie é igualmente solitária e simples. O seu trabalho que ela não menospreza, em que precedeu a tia, deixou-lhe vários tialogismos que ela debita a torto e a direito. Também ela gosta de ler livros. E escrever os seus pensamentos. Os sons que lhe chegam através das portas cerradas e que a tia classificou em três grandes categorias e ela acrescentou outra, são pura diversão. Refinado humor!

Personagens quase invisiveis para os outros mas atentas aos que os rodeia. Personagens que não vivem apenas nas páginas de um livro. 

Os bons amigos incentivam a novos desafios, com novos e/ou maravilhosos livros. Amigos que compreendem a necessidade de nos embrenharmos em mundos cada mais longíquos através dos livros. Obrigada Cristina Delgado. Tinhas razão. Gostei muito.

quinta-feira, 9 de março de 2017

O Ruído do Tempo

Autor: Julian Barnes
Edição: 2016/ junho
Páginas: 200
ISBN: 9789897223068
Editora: Quetzal Editores

Sinopse:
Em janeiro de 1936, Estaline assistiu à apresentação da muito aclamada ópera de Chostakovich, Lady Macbeth de Mtensk, no Teatro Bolshoi, em Moscovo. O compositor ficou muito perturbado com a intempestiva e prematura saída do líder do camarote, acompanhado pela sua comitiva. Dois dias depois aparecia no jornal Pravda uma crítica com o título «Chinfrim em vez de Música», escrita provavelmente pela pena do próprio Estaline. Diz Julian Barnes sobre o livro: «A colisão entre Arte e Poder - e o exemplo específico de Chostakovich - é o coração do meu romance. Chostakovich foi, durante meio século, o compositor mais celebrado da União Soviética, desde o sucesso mundial da sua Primeira Sinfonia, em 1926 (tinha ele 19 anos), até à sua morte, em 1975. No entanto, ele foi também o compositor que, na História da Música ocidental, foi mais perseguido, e durante mais tempo, pelo Estado e que sofreu pequenas e caprichosas interferências e ameaças de morte, passando por uma longa e constante coação e intimidação. Em muitas ocasiões, sob a ditadura estalinista, Chostakovich temeu pela sua vida, com razão. […] "A História, assim como a biografia, irá desvanecer-se. Talvez um dia, fascismo e comunismo sejam apenas palavras num livro de texto. Nessa altura […], a sua música será apenas música." À medida quo o ruído do tempo diminui, é mais fácil ouvir melhor a música de Chostakovich. O melhor sobrevive. Também é mais fácil ver o homem propriamente dito: complicado, cheio de conflitos e de princípios, que se condena, leal, teimoso, astuto, divertido, sarcástico e pessimista, cuja existência consistia inteiramente na sua música.»

A minha opinião:
Gosto tanto da escrita apurada e sintética de Julian Barnes. Sem falhas. Ritmada. Como uma bela musica. Desta feita sobre a vida e obra de Dmitri Chostakovich, um importante compositor russo do tempo do estalinismo, atormentado e manipulado pelo poder, que o ameaçava e punia quando não agradava ou bajulava e premiava quando cedia. Dividido em três partes, começa No Patamar quando de malas feitas aguardava que o viessem buscar a meio da noite.

"Todo aquele esforço e idealismo e esperança e progresso e ciência e arte e consciência, e acaba tudo assim, com um homem de pé junto a um elevador, com uma pequena mala que contém cigarros, roupa interior e pó dentrifico; ali de pé, à espera de ser levado."  (pag. 52)

Prossegue No Avião, quando anda em digressão pelos Estados Unidos coagido a atuar conforme é determinado pelo Poder.

"A arte é o murmúrio da História, ouvido sobre o ruído do tempo." (pag.104)

"O que podíamos construir contra o ruído do tempo? Só essa música que está dentro de nós - a música do nosso ser -, que é transformada por alguns em música real. Que, ao longo das décadas, se for suficientemente forte e verdadeira e pura para afogar o ruído do tempo, se transforma no murmúrio da História."   (pag. 138)

E termina No Carro depois de ter suportado todas as humilhações e aspirar à morte como forma de libertação.

"Toda a sua vida confiara na ironia. (...) E uma parte de nós acreditava que, enquanto pudéssemos confiar na ironia, conseguiríamos sobreviver. (...)  No entanto, já não tinha tanta certeza. (...) A ironia, já percebera, era tão vulnerável aos acasos da vida e do tempo como qualquer outro sentimento. (...) E a ironia tinha limites. Por exemplo, não se podia torturar e ser irónico; ou ser vitima de tortura e ser irónico. (...) Se virássemos costas à ironia, ela petrificaria em sarcasmo. (...) O sarcasmo era ironia que tinha perdido a alma. (pags. 186-188)

Narrativa inteligente, subtil e irónica que me encanta. Que me dá que pensar nos tempos que correm. Poderia ser uma leitura pesada mas o talento de Julian Barnes não deixa, apesar de abordar a relação do Poder com a arte e os artistas, assim como a violência mesmo que esta não seja fisica sobre o homem e a sua humanidade. 

O Livreiro de Paris

Autor: Nina George
Edição: 2017/ fevereiro
Páginas: 328
ISBN: 978-972-23-5961-0
Editora: Editoral Presença

Sinopse:
Jean Perdu é proprietário de um negócio tão especial quanto extraordinário: a Farmácia Literária, uma livraria instalada num barco atracado no rio Sena, em Paris. Ao invés de vender medicamentos, receita livros como remédio para os males da alma. Porém, embora saiba aliviar a dor dos outros, não consegue atenuar a sua própria dor. O que Monsieur Perdu não sabe é que a descoberta de uma carta do seu passado está prestes a mudar-lhe o destino. Depois de a ler, Jean encontra-se numa encruzilhada: continuar uma existência sombria e dolorosa ou embarcar numa viagem ao Sul de França, até à Provença, ao encontro da reconciliação com o passado e da beleza da vida.

A minha opinião:
Um romance que eu esperava que fosse sobre a magia dos livros. Na verdade, é mais sobre o livreiro que passou por um longo luto de 21 anos devido a um desgosto de amor e o processo de recuperação que se iniciou quando apoiou uma nova inquilina do prédio e esta encontrou uma carta esquecida. Uma carta que Jean Perdu decidira não ler. Uma carta que imaginava recheada de clichés para justificar o abandono da mulher amada, o que o deixou num estado de letargia por tanto tempo. A cura através de uma mudança abrupta, levou-o a soltar amarras da sua livraria  barco "Farmacia Literária" no rio Sena e a partir para a Provença. No fim, acaba por ser um livro sobre a viagem e os amigos desta aventura. Max, um vizinho escritor de sucesso, tal como ele, arriscou e impulsivamente embarcou. Uma viagem de crescimento e evolução. uma viagem de descoberta.

"Com cada livro passaria a trazer dentro de si cada vez mais mundo, mais coisas , mais humanidade."  (pag. 122)

Um romance que me pareceu promissor mas que ficou áquem das minhas expetativas. Contudo, é um romance de sentidos, Perdu tinha "clarividência visual e auditiva", ou seja, conseguia perceber para além da camuflagem das pessoas e encontrar o que as preocupava, o que sonhavam e o que lhes faltava e recomendar um livro. Um livro participava na libertação e para ele esse livro era "Luzes do Sul" de Sanary. Possivelmente, este livro pretende ser uma delicadeza que nos trata bem e em cada palavra imbuir-nos de bons sentimentos e vontade de viver. E certamente que o consegue porque é um hino à beleza das coisas que nos devemos permitir sentir e encantar